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O centrão se bolsonarizou, não o contrário

Bolsonaro não foi ao centro. O centrão foi a Bolsonaro. Centrão só é centro para o idiota da literalidade, que dá as mãos ao idiota da objetividade e olha o país desde sua câmara hiperbárica de análise política.

Na biologia do Planalto, centrão é um animal invertebrado que parasita o interesse público e o desfigura. Não é centro pois não tem substância nem de centro, nem de qualquer coisa. Esse corpo sem alma abraça Deus e o Diabo se Deus e o Diabo o deixarem se locupletar.

Produziu-se nesses anos vasta literatura sobre riscos à democracia. Relatórios e livros explicaram que o golpe saiu de época e foi substituído por técnicas menos espetaculares de fechamento. No lugar do tanque, a demolição gradual, parede por parede. A desconstrução, não a implosão, mostrou-se mais eficaz nessa onda de autocratização pelo mundo.

Para surpresa geral, Bolsonaro parecia jogar à moda antiga e insinuava intervenção militar no STF. O golpe fraquejou e se encerrou na notinha de Heleno advertindo sobre “consequências imprevisíveis”. Muitos dos que alertavam que o golpe não era o verdadeiro risco agora respiram aliviados e anunciam “risco superado”.

Afinal, o golpe falhou. E, se não há golpe, há triunfo democrático. O raciocínio não tem lógica mas agrada o coração. Foram só 20 meses de governo e a análise política voltou a adotar a certeza categórica como estilo retórico. A pílula tranquilizadora saiu até em capa de revista. A ciência política, escaldada, não recomenda tamanha confiança.

Se foi manobra de genialidade política ou sorte, não importa. Funcionou bem. Bastou gesto tático do presidente, receoso com os casos criminais que o implicam, e proclamaram vitória da “democracia risco zero”. A profecia se autorrealizou com o toque do centrão.

A democracia com déficit de atenção se acalmou, mas os fatos narram história diversa: à medida que a morte se espalha e o negacionismo pandêmico se reforça, o autocrata amplia popularidade e chance de reeleição (momento-chave no script da autocratização).

Continua a incitar o crime na Amazônia e a assegurar leniência fiscalizadora; está vencendo na política de armamento e na inviabilização do direito à segurança pública; multiplicam-se candidaturas eleitorais de policiais e militares e não se cogita regulação a respeito; a militarização e damarização do Estado se aprofundam.

Na política pública não se vê moderação. Florestas continuam queimando e Salles sorrindo, Damares continua a colocar recurso público nas suas ONGs sem licitação, o país continua a se alinhar à Arábia Saudita contra direitos das mulheres na ordem internacional; instituições de Estado têm sido avaliadas por sua lealdade à nova era; já se pode falar em juízes bolsonaristas e promotores bolsonaristas, não só em policiais bolsonaristas.

Moderou-se nas palavras? Justo as palavras, com as quais poucos se importaram enquanto Bolsonaro celebrava golpe de 1964, defendia tortura, torturador e ditadura? Ou agredia negro, homossexual, jornalista, cientista, professor e estudante? Ou ameaçava enviar militante para a ponta da praia, local de desova de corpos assassinados na ditadura?

Faltam só algumas bombas que Bolsonaro precisa desarmar: a CPMI das fake news, sob o poder de agenda de Alcolumbre; o inquérito das fake news no STF, sob comando de Alexandre de Moraes; e as pendências criminais de Flávio Bolsonaro, Queiroz e Wassef no STF, reunidas no gabinete de Gilmar Mendes, o maestro do centrão magistocrático.

Gilmar Mendes demorou a se reacomodar no tabuleiro desde 2018. Teve até que chamar Bolsonaro de genocida e amansar generais antes de voltar a ser o eixo gravitacional do xadrez de Brasília. Pela sua sala de jantar passam hoje a reeleição de Alcolumbre e Maia na presidência das Casas do Congresso e a nomeação de novos ministros do STF. Bolsonaro foi lá pedir a bênção ao ministro que julga seus interesses.

O bolsonarismo, com ou sem Bolsonaro, é a mais agressiva ameaça à democracia brasileira. Bolsonaro, calado, não vira poeta. Se o estilo de governo mudou, suas ações e inações seguem esvaziando políticas públicas, intoxicando o espaço cívico e combatendo os canais de produção da verdade. Pode chegar a hora em que Bolsonaro se torne dispensável.

Moderação está nos olhos de quem não vê.

Conrado Hübner Mendes – Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt

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