Neste sábado às 19h será apresentada a peça Nau do asfalto, resultado artístico da tese de doutorado, no Centro Livre de Artes Cênicas (CLAC), em São Bernardo, com debate no final e entrada franca. O trabalho de autoria de Evinha Sampaio, que é atriz-dançarina e Prof.ª Dr.ª em Artes Cênicas, já foi apresentado em Lisboa e no Chile.
Sobre a peça
Há alguns anos, quando a atriz e dançarina Evinha Sampaio andava pelas ruas de São Paulo e via um morador de rua com doença mental passando por algum tipo de surto, ela se sentia angustiada. Após presenciar alguns desses surtos, e sem ter como agir a respeito, ela refletiu e percebeu que era preciso fazer algo mais. Mas como uma atriz poderia contribuir? “Ora eu sou atriz e posso levar essa temática para os palcos!!!”, pensou. E foi assim, a partir de um olhar atento e lúcido sobre a loucura de pessoas que vivem nas ruas, que a atriz decidiu pesquisar o tema no Centro de Experimentação Cênica do Ator (Cepeca) da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. A tese de doutorado Dramaturgia de uma nau de corposoutros: uma possibilidade cênica foi defendida em abril de 2014. A pesquisa deu origem à peça teatral Nau do Asfalto.
“O doente mental que mora nas ruas é diferente do usuário de crack, do bêbado, do catador de papel ou do morador de rua comum”, diz Evinha. “Ele vive ‘a solidão dentro da solidão’. Certa vez, eu observei um deles e, de repente, do nada, ele começou a chorar. Essas pessoas vivem dentro de um mundo próprio e não percebem que há um mundo em volta deles. Falam sozinhos, discutem com o nada, gesticulam, fazem movimentos repetitivos, ouvem vozes e repetem o que as vozes dizem. Estão em um universo próprio”, relata.
A pesquisa surgiu a partir da observação dos movimentos e do universo daquilo que ela nomeou como “corpooutro“: esse outro corpo, alheio ao mundo a sua volta. Ela também conversou com psiquiatras e psicólogos.
Evinha conta que não visitou nenhum manicômio, quis apenas observar os doentes que viviam nas ruas. Mas visitou um Centro de Atenção Psicossocial (Caps) — instituição que oferece atendimento médico e psicossocial a pessoas com transtornos mentais.
Anteparos
Outro recurso foi a utilização de anteparos, conceito criado pelo coordenador do Cepeca e orientador da pesquisa, o professor Armando Sérgio da Silva, da ECA. “Anteparos são elementos que agem como protetores do ator, para ele criar uma personagem mais rica, sem cair nos trejeitos, estereótipos ou canastrice. Mas precisa ser algo concreto, visível ou não ao espectador: um objeto, um som, uma imagem”, explica. Na peça, Evinha utilizou vários anteparos visíveis ao espectador, como um saco plástico, uma mala, uma caixa e placas de papelão, elementos muito presentes em doentes mentais que vagam pelas ruas, além do próprio movimento do “corpooutro”.
A pesquisadora também utilizou recursos teóricos, como a estética do Teatro Documentário, do diretor e produtor teatral alemão Erwin Piscator (1893-1966), e da Teoria do Corpomidia, das pesquisadoras Christine Greiner e Helena Katz (professora da PUC e co-orientadora da pesquisa).
A peça é intercalada por brincadeiras de infância, como bolinha de gude, bexigas, amarelinha, esconde-esconde. “São brincadeiras de rua da minha infância. Utilizei como uma metáfora sobre o modo como eu ocupava a rua quando era criança e sobre o modo como esses “corposoutros” ocupam as ruas agora”, diz.
A história de dois doentes mentais moradores de rua estão presentes na peça. A primeira é a da travesti Luciana Avelino da Silva. Evinha se baseou em um texto original, escrito por Luciana, e disponível no documentário Omissão de Socorro, de Olívio Tavares de Araújo. A segunda história é de Raimundo Arruda Sobrinho, que morou durante 19 anos na ilha central da Avenida Pedroso de Morais, em Pinheiros, São Paulo, e escrevia poesias. Ele foi encontrado pela família e foi morar com eles em Goiânia. O caso teve bastante repercussão na mídia e Raimundo participou de alguns programas de TV.
“Eucorpo”
Segundo Evinha Sampaio, o movimento do “corpooutro”, foi o anteparo mais importante da pesquisa. “Ele foi estudado, incorporado e processado em meu corpo, passando depois à improvisação para descobrir as potencialidades expressivas com a minha impressão digital. É a minha singularidade cênica: são aqueles gestos ou movimentos que só meu corpo é capaz de fazer. E, por último, a criação dos signos. Então o movimento do “corpooutro”, segundo a Teoria Corpomídia, transformou-se em corpo, um “eucorpo”, e agora ele faz parte de minha coleção de informações”, explica.