A afirmativa que dá título a este artigo foi incorporada ao discurso do governo na sua defesa da reforma da previdência, soando como ameaça à eventual rejeição das mudanças propostas ao Congresso Nacional. Temer e seus ministros utilizam o argumento com uma espantosa e perigosa naturalidade.
E isso é de uma gravidade que é preciso destacar.
A atitude é espantosa porque vem de um governo cuja legitimidade, admitam ou não seus apoiadores, é duvidosa, seja porque chegou ao poder de modo questionável, seja porque sua rejeição popular é acachapante. Um governo com esse perfil dificilmente faria esse discurso numa democracia madura e sólida. É espantoso também, por outro lado, que os prejudicados – aposentados e potenciais beneficiários – não reajam à altura a esse desmando, capitaneados por sindicatos e centrais sindicais.
Perigoso, esse discurso, porque inverte completamente fundamentais regras do jogo e, portanto, coloca em risco a possibilidade de se continuar jogando, sem que a coisa se torne uma jogatina e termine com os participantes desferindo cadeiras uns contra os outros.
Que regras são essas, que estão querendo falsificar?
Primeiro, uma regra de cálculo. Segundo uma regra de fundamentação das relações entre o Estado e a sociedade.
A regra de cálculo: ao afirmar como causa agravante do déficit público e da dívida pública uma determinada fonte de gastos, é preciso começar da maior para a menor, da que mais onera para a que menos onera as contas governamentais – raciocínio simples. Mas o governo começa com a previdência (na verdade, assistência social, que é mais ampla e não deveria ser o caso, para justificar mudanças nas regras de aposentadoria) e não com a dívida e com os juros (que consomem mais de 6% do PIB e representam bem mais que o dobro da despesa com assistência e previdência social). O que justifica esta escolha?
É a resposta a essa pergunta que altera uma importante regra na relação entre o Estado e a sociedade, os governantes e os governados, ao mesmo tempo agentes econômicos. O governo escolhe a quem priorizar na eventualidade de não ter como honrar seus compromissos financeiros: opta pelos credores e pretere os aposentados atuais e futuros.
Ah, mas pegou emprestado, tem que pagar!, dirão os imediatistas, reforçando interesses que nem sempre são os seus e sem a consciência de um fato tipicamente capitalista: maior o risco, maiores os juros, pois sempre se pode perder o que se oferece como empréstimo.
Todos os que emprestaram e emprestam ao governo brasileiro estão recebendo, há muito e até hoje, as maiores taxas de juros pagas no mercado em todo o mundo, com a vantagem de terem o principal aumentado a cada crise, cambial ou de confiança. Com isso o governo paga, paga e paga, sem conseguir amortizar o principal – um verdadeiro paraíso para rentistas: receber juros altos sobre um valor que se eterniza.
Recebem – e muito – pelo risco e correm nenhum, os rentistas.
E quanto aos beneficiários e potenciais beneficiários da previdência? Esses pagam compulsoriamente um valor expressivo de suas rendas mensais para terem o futuro assegurado. Não pegam esse dinheiro e emprestam ao governo a taxas de juros exorbitantes, quando, se o fizessem, poderiam acumular muito. Entretanto, são esses que estão diante do risco de não receber de volta o que não emprestaram, mas foram obrigados a pagar, a maioria com descontos em holerite.
Ora essa esdrúxula situação configura a deturpação de uma das principais regras de relacionamento entre ofertantes e demandantes de empréstimos – o mercado financeiro deixa de ser mercado, portanto sem risco. E o governo deixa de ser governo, fazendo com o que deveria ser fuga ao risco – previdência – se torne um negócio arriscado.
Se nem mercado, nem governo funcionam a contento em questões essenciais para a economia e para a democracia, as instituições degringolam e sua restauração se torna quase impossível. Esse o retrato do Brasil sem povo nas ruas para protestar, sem governo nos gabinetes para agir, sem parlamento para legislar em linha com o interesse comum, com judiciário baseado em opiniões pessoais conflitantes. Retrato pintado às pressas, mas que custará muito para ser retocado ou substituído.
Valdemir Pires é professor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara