Uma das grandes polêmicas de nosso tempo que, embora muitos dos que se professam seguidores daquele que disse: “Quem tem olhos para ver, veja”, se recusam a ver, é a contraposição entre Estado e mercado. O desdobramento mais evidente dessa contraposição é a política de privatizações. Ou seja, passar do Estado para a iniciativa privada e para as grandes empresas o gerenciamento da economia.
A história dessa polêmica vem de longe e tem várias nuances. No Brasil, desde sempre o Estado foi ocupado pelas elites para geri-lo em seu próprio proveito. Ou seja, a apropriação do Estado para se beneficiar privadamente dele. Tanto que no final da ditadura cívico-empresarial-militar uma das bandeiras das oposições era a desprivatização do Estado. A seguir, com o aperfeiçoamento dos aparelhos do Estado e o uso republicano do mesmo, a partir do ordenamento jurídico dado pela Constituição Federal de 1988, paulatinamente o Estado passou a ter maior poder de gerenciamento, o que se refletiu em políticas públicas em favor da maioria da população, cujo maior exemplo possivelmente seja o SUS, hoje alvo de ataques por parte de defensores da iniciativa privada.
Por outro lado, a nível internacional, esse movimento ocorreu bem antes, nos anos consecutivos ao final da Segunda Guerra Mundial, com o estabelecimento principalmente na Europa, do chamado Estado de Bem-Estar Social como uma forma de aliviar as pressões das classes trabalhadoras sobre o Estado capitalista. Nesses países, em grande parte subsidiados pelas riquezas advindas da exploração do chamado à época Terceiro Mundo, como o Brasil, o Estado se incumbiu de fazer uma relativa distribuição da riqueza, fornecendo aos trabalhadores em geral direitos essenciais, como boas condições de alimentação, de saúde, de moradia, de educação, de cultura. Daí o nome bem-estar social. Entretando, com a crise do petróleo de 1973 e o rompimento pelos EUA dos acordos de Bretton Woods de paridade dólar-ouro, sendo o dólar americano a moeda das transações internacionais, iniciou-se uma nova etapa, tanto internacionalmente como no interior dos países. Essa nova etapa foi denominada Neoliberalismo. A partir daí o centro do poder no mundo, representado por vários desses países, passou a considerar o Estado como uma estrutura pesada demais e que por isso restringia os possíveis ganhos de suas elites com a exploração privada de serviços essenciais, como os mencionados acima. Adveio daí a onda de privatizações e de regulação dos gastos, como no Brasil, o teto de gastos, hoje arcabouço fiscal. Onda essa que se espalhou por todos os países. A crise geral do capitalismo de 2008 potencialmente tão ou mais destrutiva que a de 1930, que foi um dos fatores que levou à 2ª Guerra Mundial, provou a falácia desse princípio, haja vista que foi somente a intervenção do Estado norte-americano, injetando bilhões de dólares nos bancos e no mercado, que amenizou a crise. De lá para cá, inúmeros serviços que foram privatizados voltaram a ser estatizados. Porém, grosso modo, pode-se dizer que o neo-liberalismo ainda é hegemônico no mundo e é um dos fatores que aprofunda o conjunto de crises que hoje vivemos mundialmente. No Brasil não é diferente e a onda de privatizações continua.
Entretanto, eis que surge a catástrofe ambiental jamais vista que devasta todo um Estado da União, o Rio Grande do Sul. Aí, para quem quiser ver, se revelam com meridiana clareza, os limites da iniciativa privada e a necessidade de um Estado forte econômica e socialmente. Nos últimos anos o Rio Grande do Sul e sua capital Porto Alegre foram geridos por governos neoliberais e privatistas. Uma das evidências e consequências disso foi o desmonte dos órgãos responsáveis pelo sistema de contenção de cheias em Porto Alegre e o favorecimento de políticas agrárias degradadoras da natureza. Os resultados estão à vista de todos. Acrescente-se ainda que a reconstrução do Estado, desde o socorro imediato às vítimas até a recuperação da infraestrutura terá que ser feita pelo Governo Federal, visto não haver iniciativas nem do Governo do Estado e nem da Prefeitura de Porto Alegre nesse sentido. Pelo contrário, buscam ainda privatizar a catástrofe contratando, por exemplo empresas privadas estrangeiras, que visam acima de tudo o lucro, como se fossem salvadoras da situação. Por isso, hoje, ser de direita é ser privatista e ser de esquerda é ser defensor do Estado. Evidentemente há quem ocupa o Estado para privatizar e assim defender os interesses privados do capital.
Mas porque a maioria da população não vê essa contraposição e se coloca a favor das privatizações e, portanto, contra seus legítimos interesses de cuidados por parte do Estado? Porque os maiores meios de comunicação de massa do país como jornais, TVs e mídias sociais, representam massivamente os interesses do capital e da iniciativa privada e inculcam, por meio de permanente e persistente propaganda, a todo o momento, a ideia de que a privatização é o melhor para o país, quando na verdade é apenas melhor para seus interesses econômicos privados. Enquanto não nos conscientizarmos disso continuaremos apoiando e votando propostas econômicas contrarias a nós mesmos.
Luiz Eduardo Prates
Sociólogo, teólogo e educador.