Não podemos esquecer o passado

Quando, no Brasil de 2019, algumas pessoas têm a infeliz ideia de pensar em volta da ditadura, os idosos (integro este grupo) têm o dever de falar.

Durante o período da ditadura, mantive correspondência com exilados. Um dos principais temas das cartas eram as notícias que lhes dava a respeito da luta pela anistia ampla, geral e irrestrita. Eu integrava, nessa ocasião, o comitê pela anistia. Esta participação, no combate em favor da Anistia, é certamente o mais relevante item do meu curriculum vitae. Uma das pessoas com quem mantive contato epistolar foi Zélia Stein, que veio a falecer longe da Pátria, no Uruguai.

Todas as cartas que me chegavam às mãos eram violadas. Os censores nem tinham o pudor de disfarçar o desrespeito à privacidade. Muito pelo contrário. Depois de abertas e lidas, as cartas eram lacradas com fitas adesivas grossas, de modo que o destinatário soubesse que seus passos estavam sendo vigiados. Tenho no meu arquivo essas missivas.

De que tratava a correspondência com Zélia Stein? Tramávamos atentados, atos de sabotagem, resistência armada à opressão que estava sendo imposta ao povo brasileiro?

Nada disso. Se a luta armada dependesse de mim estava antecipadamente fadada ao insucesso, pois nunca matei nem passarinho. E uma cobra que foi esmagada pelos pneus de um carro, que eu dirigia, foi morta em razão de minha incompetência como motorista. Saí da estrada porque cochilei no volante.

Mas voltemos a Zélia Stein (ou Zélia Marluze Stein, seu nome completo). Que grandeza de alma! Que idealismo! Que crença no futuro do Brasil, sob a égide da Justiça Social, da Liberdade, da distribuição dos bens. Zélia nunca permitiu que seus sonhos se apagassem. Na idade adulta, até chegar aos umbrais da morte, continuou sendo a jovem idealista dos tempos de Faculdade em Vitória. Em razão de suas convicções e de sua coragem, Zélia foi perseguida, sofreu muito, porém jamais capitulou. Ela é um exemplo e uma luz.

Como Zélia ficava feliz quando eu lhe mandava um pacote de café! Não era o café bebido dentro da própria casa. Era o café do exilado. Era o café que lhe era mandado por um juiz indisciplinado, que lutava pela Anistia. Era o café abençoado pela solidariedade, para que Zélia sentisse o sabor daquele pó que tinha sido colhido por mãos operárias, mãos muitas vezes oprimidas por condições de trabalho semelhantes às do trabalho escravo.

Não sou saudosista. Tenho os pés fincados no presente e diviso com esperança o futuro. Quando recorro à saudade, a intenção é alimentar, sobretudo no espírito dos jovens, projetos do amanhã. Que os jovens se mirem no que foi para construir o que será.

João Baptista Herkenhoff é juiz de Direito aposentado (ES) e escritor